domingo, 3 de setembro de 2017

***Colaboração***

Qual conselho você daria se soubesse que um colega
perderia a vida num acidente daqui a pouco?

(foto: reprodução de vídeo)

(por Ruy Flemming)

Ao longo desses 36 anos na aviação, mais de uma vez eu cheguei com "shimmy" de joelho depois de alguma cagada que fiz em voo. "Shimmy" de joelho, boca seca, mãos suadas e outras manifestações fisiológicas acontecem quando a gente vê a morte perto do pára-brisas chamando você pra bater um papo. Tive outras situações em que aconteceu só uma leve aceleração dos batimentos do coração.
O interessante é que eu sempre fiz uma auto-análise depois de situações ruins pra entender onde foi que a merda se manifestou a ponto de ser quase irreversível. Quando não foram questões de exibicionismo, falta de planejamento, ou qualquer outra que eu tinha a resposta desde sempre, sempre optei por conversar com colegas mais experientes para entender o que tinha acontecido.
Nunca tive esse melindre de buscar conhecimento.
Fico imaginando o que seria dito sobre mim se, depois de alguma cagada dessas que mencionei, tivesse dado tudo errado.
Seria de arrepiar. Eu seria massacrado por alguns. Até a minha mãe teria sido lembrada de forma pouco carinhosa...
Eu não teria como me defender com frases como: "achei que dava", "não imaginei que o vento estava tão forte", "demorei a perceber", "mas a meteorologia na decolagem estava tão boa e não fazia ideia que o destino estava tão ruim", "precisava chegar", "avaliei mal", "kct, desculpe mas fiz merda mesmo", e outras do gênero.
Se você é piloto e conversou com colegas já ouviu coisas assim. Talvez você mesmo já tenha dito esse tipo de coisa. Já imaginou que quem se vai num acidente não teve a chance de dizer o que pensou? Olha que lição valiosa deixamos de aprender!
Não sou nenhum ás da aviação, talvez por isso tenha usado, mais de uma vez, frases parecidas como as que citei. E algumas outras.
Já ouvi, de alguns colegas com quem voei, frases que diziam mais ou menos o seguinte: vamos ficar de bico calado porque fizemos merda.
Quem voa na aviação geral e coloca um punhado de horas de voo no bolso, se tiver coragem, tem história pra contar. Ou tem motivos ficar de bico calado. Também se tiver coragem.
A não ser que seja o caso daquele piloto alemão suicida (da Germany), que fez respingar por aqui com nossos exames psicotécnicos a cada exame médico, um piloto que se acidenta não sai de casa para se matar e matar quem estiver com ele.
Se morreu, faltou alguma coisa. O que seria?
Por entender que nem todos nós somos ases da aviação, é que publico algumas situações ruins pelas quais passei ou escrevo alguma análise de situações ruins que colegas se meteram. Quando não sou eu o envolvido, sempre preservo o nome do santo e só falo sobre o milagre.
Não tenho esse melindre em passar experiências.
Acredito que correr atrás de conhecimento, e experiências, ajuda muito na hora de procurar os arquivos mentais pra tomar as melhores decisões.
Respeito toda e qualquer opinião contrária, mas não acredito que massacrar quem pagou com a vida um erro que tenha cometido, possa melhorar a aviação.
Se bem que já vi gente aproveitar um acidente para se auto-promover.
Prefiro acreditar na análise consciente de cada situação ruim pra evitar que alguma coisa ruim possa acontecer com a gente.
Quais teriam sido os argumentos mentais do piloto que não queria decepcionar a noiva?* Será que ele precisava ter mais informações em seu banco de dados mental para tomar uma decisão que não fosse catastrófica? O que você teria dito a ele se soubesse que sua vida iria acabar naquele voo? Será que não tem outros pilotos por aí muito mais carentes de bons conselhos?
Você tem a fórmula pra garantir a volta pra casa de algum colega depois de um voo?
Você já deu esse conselho alguma vez?
Quando algum colega não conclui seu voo, um piloto consciente com a aviação como um todo, sempre sente que poderia ter feito algo a mais para evitar a tragédia. Jamais comemora internamente e jamais aponta o dedo. Simplesmente porque sabe que cada um de nós temos uma lasca de responsabilidade.
Ninguém é tão "phoda" que possa se imaginar invulnerável. Isso é coisa de Top Gun. Coisa de cinema. A vida real conta uma história bem diferente.
Ouvindo e lendo por aí, concluo que existem aviadores que entendam que um acidente mata mais do que os envolvidos no próprio acidente.
Um acidente sempre mata um pouco de cada um de nós.
Não quero acreditar que você chegou até esse ponto desse texto e pense diferente disso.
Talvez falte aviador que queira o melhor para a aviação e tenha dificuldade de enxergar um cenário que vá além do próprio umbigo.
Acho que você concorda.
Antecipadamente peço desculpas se algum aviador sentir-se ofendido com minhas colocações, mas acredito que uma aviação melhor passa pelas melhores práticas operacionais. Quando experiências ruins acontecerem, que ensinamentos que possam ser difundidos.
Se você soubesse que você mesmo poderia dançar no próximo voo, gostaria de ouvir alguma dica pra evitá-lo e seguir sua vida?
Desculpe o textão, mas se você chegou até aqui, merece o compartilhamento.
Compartilhe sem dó. Talvez alguém esteja precisando ler isso para sempre voltar pra casa depois de um voo.
Todos nós agradecemos.
Bons voos pra você!

* o famoso caso do helicóptero que fez um voo fretado não autorizado transportando noiva, irmão da mesma e fotógrafa, que se acidentou a caminho da festa de casamento, no ano passado.

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Penso que isso também possamos usar em nossa vida em geral, quando ficamos na dúvida entre ajudar ou não alguém que está inseguro em algum aspecto de sua vida. Tá certo, se a pessoa não quiser ser ajudada, não nos ouvirá. Não mudará sua ação, mesmo que seja perigosa. Mas, às vezes, mesmo que não aparente, poderá pensar a respeito e se salvar de apuros. E é aí que estaremos ajudando alguém mesmo sem saber. Ninguém imagina quantos conselhos evitaram acidentes, pois só tomamos conhecimento de acidentes, especialmente aqueles em que os protagonistas não ouviram conselhos. 
Os negritos foram por minha conta, para destacar frases que acho fundamentais. (Solange Galante)

3 comentários:

  1. Não sou um expert, pois não tenho bem 3 mil horas nesses 18 anos de pilotagem na Amazônia. Mas geralmente esquecermos do básico e fundamental. As coisas que nos mantém vivos e evitam acidentes são as mais simples que subestimamos com o passar do tempo, como dormir bem, cuidar da saúde, estudar a rota, a meteorologia, um bom planejamento, um pré vôo detalhado, usar sempre o checklist corretamente, voar o avião e fazer uma reta final estabilizada ou arremeter. Coisas que todos aprendermos nas primeiras 10 horas de vôo, mas com o passar dos anos passamos a desvalorizar, até dar "shimmy" de joelhos.
    Bons voos

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Exato, Márcio. Na maioria das vezes, acidentes acontecem por motivos mínimos, uma negligenciada, geralmente em algo que o piloto acredita fazer automaticamente, por isso deixa de dar a importância devida. Abraços e bons voos!

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